Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 11 de Outubro de 2001
Toda crítica social tem por fundamento uma ideia do melhor. É só em comparação com essa ideia que a sociedade existente pode parecer boa, sofrível, má ou insuportável. Mas a ideia do melhor não surge do nada: é pensada por homens concretos, membros da mesma sociedade que criticam. Se considerarmos que a mentalidade desses homens é inteiramente um "produto" da sociedade, então, das duas uma: ou eles próprios incorrem nos males que denunciam, ou a sociedade, tendo dado a esses homens a ideia do melhor, não pode ser tão má quanto eles dizem.
Logo, toda crítica social que pretenda ter algum fundamento só pode ser baseada na premissa de que haja na consciência do homem uma dimensão que transcende de algum modo a sociedade presente e na qual ele possa instalar-se em pensamento para julgar essa sociedade desde fora ou desde cima.
É evidente, no entanto, que o simples apelo verbal à instância legitimadora não basta para dar validade à crítica. É preciso que esta não somente alegue, mas prove sua filiação lógica à autoridade superior.
As críticas sociais, portanto, podem ser hierarquizadas numa escala de validade estritamente objectiva, conforme (a) a legitimidade intrínseca da autoridade convocada a legitimá-las; (b) a maior ou menor consistência lógica do nexo entre a autoridade legitimadora e o conteúdo da crítica. Dito de outro modo: (a) A autoridade da instância superior convocada a legitimar a crítica pode ser falsa ou deficiente em si, como no caso do crítico que condena a sociedade com base num puro modelo utópico de sua própria invenção. (b) Se a autoridade alegada é válida em si, há ainda o risco de que a dedução que dela extrai o crítico para validar a crítica determinada de uma sociedade determinada não seja uma dedução válida logicamente.
Uma história das críticas sociais desde a Antiguidade até nossos dias demonstraria facilmente que, ao longo dos tempos, as críticas sociais formuladas no mundo ocidental vieram progressivamente perdendo validade ao mesmo tempo que cresciam em virulência e em número de seguidores. Dito de outro modo: à medida que passam os tempos, os críticos sociais perdem em autoridade intrínseca o que ganham em pretensão e audiência.
Sei que esta observação é lamentável e que alguns, sem ter jamais estudado o assunto ou sequer conscientizado minimamente a sua existência antes de ler este artigo, a recusarão "in limine" e buscarão abrigo contra ela em toda sorte de subterfúgios. Só o que tenho a dizer a esses é que não me amolem e vão estudar. Aos demais, isto é, àqueles nos quais o enunciado de uma hipótese suscite curiosidade em vez de indignação ou lágrimas, sugiro que comparem, por exemplo, a crítica socrática à marxista. Esta última tem muito mais adeptos e é muito mais feroz que a primeira, mas, ao declarar que a consciência dos homens é "produto" da História, já não pode alegar outra instância legitimadora senão a História mesma; mas, como a História não traz modelos para o seu próprio julgamento e sim apenas o relato dos fatos consumados, não resta alternativa ao crítico marxista senão deduzir da História transcorrida uma hipótese de desenvolvimento futuro e tomá-la desde já como instância legitimadora da crítica do presente. Nada prova que o desenvolvimento previsto seja necessário nem que o estado de coisas dele resultante tenha de ser melhor do que o presente estado de coisas; tudo isso é apenas hipótese e não tem portanto autoridade legitimadora senão hipotética. Já a crítica de Sócrates, que não angariou adeptos senão num círculo muito limitado, tinha um fundamento muito mais sólido, pois as instâncias legitimadoras a que apelava eram a certeza da morte e a autoridade intrínseca da razão, que nenhum homem pode rejeitar.
Em desvantagem maior ainda fica o marxismo quando comparado à crítica social dos profetas hebraicos, que extraíam sua autoridade do cumprimento das profecias. A crítica de Moisés ao estado de coisas no Egito fundava-se no seu preconhecimento dos meios concretos de levar o povo judeu a uma situação melhor; e o sucesso do empreendimento deu plena comprovação às suas pretensões. Esse é um argumento que nenhum marxista pode alegar em apoio de suas críticas ao capitalismo. Bem ao contrário, as realizações históricas do modelo socialista na URSS e na China foram de tal modo decepcionantes, que os marxistas, após tê-las proclamado e defendido como as mais puras e típicas expressões da superação marxista do capitalismo, hoje se empenham "ex post facto" em explicá-las como desvios acidentais e em limpar o marxismo de qualquer comprometimento com fracassos tão óbvios.
1 comentário:
Uma análise ainda que apressada do texto permite-me, com uma margem de erro mínima, de qualificar o autor como um cidadão geneticamente antimarxista .
A teoria económica de Marx, por exemplo, não se despeja para a lixeira da história com a desenvoltura assumida por Olavo de Carvalho.
“Para além do capital”, de István Mészáros é uma obra da maior envergadura deste filósofo húngaro. Este livro, fruto de duas décadas de trabalho intenso, é uma das mais aguçadas reflexões críticas sobre o capitalismo em suas formas, engrenagens e mecanismos de funcionamento. As pessoas terão o direito de pensarem com as suas cabeças. Se calhar até podem ser anti-marxistas primários. No entanto, penso que ninguém tem o direito de arrogantemente se permitir, repito, formular críticas com a displicência como a que foi produzida pelo autor.
Já agora forneço algumas referências sobre Mészáros: um autor que precisou de duas décadas para se debruçar sobre o Capital de Marx.A outros, bastam-lhe segundos.
István Mészáros nasceu em Budapeste, em 1930, onde se graduou em Filosofia. A partir de 1951, foi assistente de Georg Lukács no Instituto de Estética. Com a invasão da Hungria pelos soviéticos em 1956, exilou-se na Itália, onde trabalhou na Universidade de Turim; posteriormente ministrou aulas nas universidades de Londres (Inglaterra), St. Andrews (Escócia), Sussex (Inglaterra), Universidade Autônoma do México e Universidade de York (Canadá). Atualmente vive em Rochester, na Inglaterra.
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