sábado, 22 de novembro de 2008

SE MUGABE FOSSE AMERICANO


A DIAS POSTEI AQUI UM TEXTO INTERESSANTIMO ASSINADO PELA PENA DO GRANDE MIA COUTO E LOGO ASSEGUIR UM OUTRO DO NAO PEQUENO PATRICIO LANGA. HOJE TRAGO UM OUTRO DESTA VEZ DO TAMBEM GRANDE ELISIO MACAMO GERADO DOS DOIS(O DE MIA E A INTERPELACAO DE LANGA).

"Mugabe americano branco
Já agora, porque não entrar na onda das especulações encorajado pelo sempre interessante texto do Mia Couto (que circula pela internet), mas também pela interpelação incisiva feita pelo Patrício Langa? Porque não? Mas como entender a pergunta: e se Mugabe fosse americano? Difícil. Ou melhor, depende. Branco ou preto? Descendência directa africana ou descendência indirecta por via dos americanos-africanos? Qualquer que seja a resposta que dermos a estas perguntas, as coisas mudam de perfil. A análise não pode ser a mesma. Se Mugabe fosse americano branco, como professor primário que ele é, nunca teria chegado a lado nenhum. Precisava de ter estudado direito ou gestão e decidido, muito cedo, meter-se na política em defesa de certos interesses que não têm necessariamente muito a ver com a sorte da maioria. No Zimbabwe ele formou-se politicamente na defesa dos interesses de uma maioria espezinhada, oprimida e constantemente ferida na sua dignidade humana. Os que o criticam hoje esquecem isso com muita facilidade.
Ele passou anos na cadeia, passou privações no exílio e na guerra de libertação guiado não só pelo ideal de um dia vir a fazer vida negra a Morgan Tsvangirai e cuspir na cara do mundo, mas guiado, também, pela esperança da recuperação da dignidade humana de todo um povo. E recuperou essa dignidade, mas o simples facto de ter tido que consentir esses sacrifícios todos pela recuperação de algo apregoado (mas não cumprido) por gente aparentemente decente e sensata há-de o ter marcado como político. Nada justifica atrocidades cometidas em nome de seja qual for o ideal, mas ignorar o papel formativo que certas experiências têm na vida de um político é também a forma mais segura de nunca poder perceber porque os políticos agem como agem e o que deve ser feito para os envolver no diálogo que é sempre necessário. Um Mugabe americano branco teria consentido sacrifícios pelos negros americanos e ganhar projeção nacional? Esses negros americanos teriam dinheiro suficiente para financiarem a sua campanha? Ou teria ele usado a causa “negra” simplesmente para se projectar como, aliás, alguns políticos liberais norte americanos o fazem? Uma vénia aqui e acolá pelas causas desta mais aquela minoria a caminho do capitólio em Washington... Ou fazer de Michael Moore com as suas críticas enfadonhas e mal articuladas à consciência liberal americana?
Nos Estados Unidos da América, como aliás no Brasil também, há reservas de índios, verdadeiros antros de alcoolismo e decadência. Ter-se-ia inspirado nessa realidade um Mugabe branco americano para se livrar do problema dos fazendeiros brancos no Zimbabwe? Estilo meter todos esses fazendeiros que teimam em controlar a riqueza do país conquistado com luta e sacrifício em reservas? Estilo organizar aí excursões turísticas para ir ver “brancos africanos”? Ou teria ele legislado de forma restrictiva como alguns estados o fazem lá nos EUA contra “ilegais”, submetendo-os ao tratamento mais ignomioso que uma nação que se considera civilizada pode submeter a outros seres humanos? Ou então, porque não, encorajar os fazendeiros brancos a regressarem às raízes como, aliás, as missões cristãs fizeram lá nos EUA em relação aos negros que foram enviados para a Libéria? Comprava-se um pedacinho de terra em Cornwall na Grã-Bretanha para os fazendeiros zimbabweanos e, prontos, estava resolvido o problema. Estava?
Ou seria ele, caso conseguisse chegar à Casa Branca com essa agenda, aliado de Tony Blair na inviabilização de uma solução para o problema do Zimbabwe? Meios para tal não lhe faltariam. Era só fazer como os Bush fizeram. Era só fazer como administrações anteriores fizeram em relação a muitos outros países e a muitos outros conflitos: Nicarágua, Panamá, Granada, Cuba, Vietname, etc. Aliás, era só ser igual a si próprio e tolerar durante anos a fio regimes de minoria branca na África do Sul e na Rodésia do Sul. Anos a fio. Porque é que nós – agora estou a falar de nós os africanos em África – começamos as nossas homilias sempre do zero? Assim que o Ocidente muda de ideias – estilo, a partir de agora é errado ter governo de minoria branca – já não nos interessamos em recordar a esses fulanos que no passado defenderam – ou, pelo menos, não levantaram nenhum dedo contra – esse tipo de regimes. Será uma maneira de os ilibarmos da sua responsabilidade na formação de uma cultura política niilista entre nós? Será uma maneira de evitarmos ver que, quer a gente queira, quer não, somos produtos desta relação com o Ocidente? Será isso?

Mugabe americano negro

Está bem. Suponhamos que Mugabe americano fosse negro. E aí? Como professor que ele foi teria chegado a algum sítio? Teria sido professor? Se ele se tivesse envolvido na campanha dos direitos cívicos, estaria hoje vivo? E se estivesse vivo, seria como político moderado, político radical ou o quê? Quantos milhões de negros não votam nas eleições americanas por estarem na cadeia? E porque estão na cadeia? Porque são criminosos? Só por isso? Num país civilizado e democrático como os EUA só se pode estar na cadeia por se ser criminoso? Só? Que oportunidades é que aquela nação dá aos seus? Como são distribuídas essas oportunidades? Como se pode articular o desconforto em relação a isso? Pela sua idade, Mugabe teria começado a fazer política nos EUA no período de McArthur. Portanto, é bem provável que tivesse sido logo rotulado de comunista com todas as consequências que daí adviriam.
Obama conseguiu, portanto, vamos supor que um Mugabe negro também conseguisse. E depois? Vamos supor que uma vez chegado à Casa Branca ele decidisse distribuir melhor a riqueza do país. Vamos supor que ele quisesse que os negros americanos fossem compensados por tudo quanto tiveram de sofrer naquele país. O tratamento indigno como escravos; as humilhações que atingiram o seu auge na declaração de independência que proclamava a liberdade natural do homem no mesmo momento em que milhões eram mantidos em situação de escravatura; as violações, os maus tratos, a longa e dura caminhada pelo reconhecimento da sua humanidade, as vicissitudes sofridas às mãos do Ku Klux Klan, etc. Então, chegado à Casa Branca e com o intuito de corrigir esses erros do passado: haviam de o deixar fazer? Os amantes da democracia e do Estado do direito haviam de deixar? Não iriam usar o pretexto de alguns dos seus conselheiros se enriquecerem ilicitamente para chumbarem todo o projecto? Transformarem-no num diabo para que seja cada vez mais difícil falar com ele? E ele, como reagiria? Diria “muito bem, já que não querem, vou deixar”? Diria isso? Ou iria ser perseverante? Pior: não é provável que ele também se radicalizasse e passasse a ver todos quantos estivessem contra os seus métodos como inimigos da causa legítima? Eu acho que é e creio ser, em parte, o problema que temos no Zimbabwe. Aqui, como em várias outras coisas, o nosso sentido crítico espontâneo não tem ajudado muito.
E há um precedente histórico que gostaria de citar longamente para temperar o entusiasmo por Obama, mas sobretudo para mostrar a longa caminhada feita para que Obama fosse possível, isto é, para mostrar o que foi necessário fazer para que Obama pudesse fazer a campanha nos moldes como a fez. No dia 16 de Abril de 1963 Martin Luther King Jr., o grande activista dos direitos cívicos (reparem: direitos cívicos, não direitos de negros!), escreveu uma carta da prisão de Birmingham (no sul dos EUA) onde se encontrava detido por ter participado em manifestações pacíficas contra as leis de segregação nessa cidade. A carta era dirigida a clérigos judeus e cristãos que, por sua vez, haviam escrito uma carta aberta a condenar a “impaciência e inoportunidade” do movimento cívico e seus “métodos” de luta que atentavam contra a ordem pública. É uma excelente carta, um dos exemplos mais finos de retórica que existem por aí. Quem quiser a versão completa é só googlar: “Letter from a Birmingham prison”. A carta responde a esses clérigos e eu, em tradução livre, vou salientar apenas algumas passagens:

"vocês lamentam as manifestações que estão agora a ter lugar em Birmingham. Contudo, na vossa declaração esqueceram-se de exprimir a mesma preocupação em relação às condições que conduziram a essas manifestações. Tenho a certeza de que nenhum de vocês ficaria contente com o tipo de análise social superficial que lida apenas com os efeitos e não se preocupa com as causas de fundo. É lamentável que haja manifestações em Birmingham, mas é ainda mais lamentável que a estrutura do poder branco da cidade tenha deixado a comunidade negra sem nenhuma outra alternativa...
Sabemos a partir da nossa experiência dolorosa que a liberdade nunca é dada voluntariamente pelo opressor; ela deve ser exigida pelo oprimido. Francamente, nunca estive envolvido em nenhuma campanha de acção directa que tivesse sido “oportuna” na perspectiva dos que sofreram injustamente a doença da segregação. Durante anos a fio tenho ouvido “espera!”. Soa com familiaridade cortante no ouvido de todo e qualquer negro. Este “espera” tem significado quase sempre “nunca”. Devemos concordar, com um dos nossos mais conceituados juristas, que ‘justiça que demora muito a chegar é justiçada recusada’.
Esperamos mais de 340 anos pelos nossos direitos divinos e constitucionais. As nações da Ásia e de África estão a caminhar com a velocidade de jacto rumo à conquista da independência política, mas nós rastejamos à velocidade de cavalo e carroça rumo ao direito de tomarmos uma chávena de café na cantina. Se calhar é fácil para quem nunca sentiu as setas pontiagudas da segregação dizer “espera”. Mas quem viu multidões viciosas a lincharem as suas mães e pais de qualquer maneira e a afogar as suas irmãs e seus irmãos por capricho; quem viu o polícia cheio de ódio a insultar, chutar e mesmo matar os seus irmãos negros e irmãs negras; quem vê a grande maioria dos seus vinte milhões de irmãos negros sucumbindo numa gaiola de pobreza hermeticamente fechada no meio de uma sociedade afluente; quem de repente se vê com a língua amarrada e com a fala entrecortada ao tentar explicar à sua filha de seis anos porque ela não pode ir ao parque público de entretenimentos que acaba de ser publicitado na televisão, e vê as lágrimas a subirem-lhe aos olhos quando alguém lhe diz que o parque de diversões está interdito a crianças de côr, e vê nuvens ameaçadoras de inferioridade a formarem-se no seu pequeno céu mental, e vê-a começar a distorcer a sua personalidade através do desenvolvimento de uma amargura inconsciente em relaçãos aos brancos; quem tem de inventar uma resposta para o seu filho de cinco anos que lhe pergunta: “pai, porque é que os brancos tratam assim tão mal as pessoas de côr?”; quem guia de carro pelo meio rural e se vê obrigado a dormir noite após noite em cantos desconfortáveis do carro só porque o motel não o aceita; quem é humilhado dia após dia por sinais persistentes que dizem “branco” e “de côr”; quem vê o seu primeiro nome ser transformando em “negro”, o nome do meio em “rapaz” (independentemente da idade) e o último se transforma em “John”, e a sua mulher e mãe nunca são tratadas com a forma de respeito “senhora”; quem é acossado de dia e atormentado à noite pelo facto de ser negro, vivendo constantemente na ponta dos dedos, nunca sabendo o que esperar no momento seguinte, e é assolado por receios internos e ressentimentos externos; quem está sempre a lutar contra um sentido degenerativo de “ser ninguém” – esse compreende porque nos é difícil esperar. Chega um momento em que o copo do sofrimento em silêncio transborda, e os homens não estão mais dispostos a se deixarem empurrar para o abismo do desespero. Espero, meus senhores, que compreendam a nossa impaciência legítima e inevitável. Vocês revelam uma boa dose de preocupação em relação à nossa vontade de violar leis. Esta preocupação é naturalmente legítima. Uma vez que nós também nos empenhamos em exigir que as pessoas obedeçam a decisão de 1954 do Tribunal Supremo que torna ilegal a segregação em escolas públicas, pode parecer, à primeira, algo paradoxal que nós conscientemente violemos leis. Pode-se com legitimidade perguntar: “como é que vocês podem advogar a violação de algumas leis e a obediência a outras?”. A resposta reside no facto de que há dois tipos de leis: justas e injustas. Eu seria o primeiro a advogar a obediência a leis justas. A responsabilidade de obedecer a leis justas não é só jurídica, mas também moral. Pelo contrário, existe uma responsabilidade moral de desobedecer leis injustas. Eu concordaria com o Santo Agostinho que “uma lei injusta não é praticamente nenhuma lei”."

Se Mugabe fosse americano negro teria crescido neste meio de desespero, ressentimentos no meio de tanta hipocrisia, um meio que Obama não deve ter conhecido porque, felizmente, ele pertence a um outro meio social, o meio social de sua mãe não só branca como de certeza de um certo nível de educação e com outra estrutura de oportunidades. O que torna Obama diferente de Jesse Jackson, Malcolm X e vários outros, estilo Al Sharpton da Fogueira de Vaidades de Tom Wolfe, é, também, capaz de ser isso. Um Mugabe americano seria muito provavelmente um Mugabe quase igual ao Mugabe real. O contexto muitas vezes faz a pessoa.
Isto não invalida as críticas legítimas que devemos fazer ao que anda mal entre nós; não torna ilegítimas as nossas preocupações pela democracia e respeito dos direitos humanos em África. Mas uma crítica feita constantemente sem referência à história real, ao contexto que fez as pessoas e aos grandes desequilíbrios que até hoje persistem é uma crítica pouco susceptível de nos levar adiante na nossa luta pela emancipação. 1963 foi há bem pouco tempo, historicamente falando. Quem pode ousar esquecer isto? Quem pode ter a coragem de dizer que isso é passado, não conta mais, agora não há mais desculpas? Nunca aplaudi Mugabe pelo que ele faz no seu país; já escrevi textos a condenar a sua política, as suas tentativas de tornar o marxismo ainda válido para a solução dos problemas do seu país e a sua mão dura contra a oposição. Nunca, contudo, vou diabolizar o tipo, pois na sua política errática e na sua maldade está o que a história fez de nós todos. Compreender não é concordar. Mas sempre esquecemos isso.
Se Obama fosse africano teríamos dado um passo muito grande nos nossos esforços de emancipação. Que ainda não existam condições para o surgimento de um Obama entre nós não significa que estejamos entregues aos maus. Os maus não existem. Existe apenas esta horrível história que teimamos em ignorar."

2 comentários:

JOSÉ disse...

Este é um bom trabalho de uma das mentes brilhantes de Moçambique mas o facto de ser defensor do Mugabe tira credibilidade ao Dr. Elisio Macamo.
O mau hábito de culpar sempre os outros pelos nossos erros tem causado prejuízos incalculáveis a África!
Se Mugabe fosse americano, preto ou branco, seria impossível fazer carreirea política, lá não há espaço para tiranos megalómonos!

Nelson disse...

"Este é um bom trabalho de uma das mentes brilhantes de Moçambique mas o facto de ser defensor do Mugabe tira credibilidade ao Dr. Elisio Macamo".

Deixei de ter certeza se o Dr. Elisio Macamo defende Mugabe. Lendo-o com cuidado parece que procura de forma cronica "negar" o obvio simplesmente por ser obvio e partir para o oculto. No caso do Zimbabwe por exemplo parece que procura dizer "ok Mugabe esta como esta, faz oque faz, mas oque foi que condicionou isso"? Nega que nos deixemos ficar pelos efeitos que sao tao nitidos e nos obriga o buscarmos as causas. Acha ele que olhando um pouco para as causas entenderiamos melhor os efeitos e minimizariamos a "crucificacao" a Mugabe.
Me parece ser a mesma linha que Patricio Langa seguiu ao Inyterpelar Mia Couto. No seu texto Mia procurou mostrar ainda que hipoteticamente porque um Obama seria impossivel no contexto politico da Africa. Por sua vez Patricio veio dizer que nao bastava apontar essas impossibilidades. Mia tinha que ir mais longe mostrando os condicionalismos que propiciam essas impossibilidades. Ha problemas com as elites politicas africanas sim. Isso todos sabemos. Mas oque faz com que os politicos africanos sejam como sao e os americanos sejam como sao. Enfim nesse palavreado fica muita coisa nao muito claro. De repente pode ser um jeito subtil de defender Mugabe.
Me lembro do camarada da Voz da Revolucao que pediu que lhe dessem dados numericos de Zimbabweanos que estavam sofrer por causa de Mugabe.
No fim do dia seja la oque for que condicionou a atitude de Mugabe, nao tenho como inocenta-lo pois alternativas nunca faltaram. Mugabe podia ter partido para outra direccao. Ha sempre um "mal menor"