sábado, 15 de novembro de 2008

E se OBAMA fosse...

Patrício Langa e o seu “olhar sociológico”agora B’andhla (http://circulodesociologia.blogspot.com)- é uma refência obrigatória na blogosfera moçambicana. Procura sempre não reflectir de forma simplista seja la qual for o assunto profunda. Quando tenho energia mental o leio com muito gosto. Hoje fui lá e dei-me com o texto que se segue onde “descasca” o “se Obama fosse africano” do grande Mia Couto. Depois de já ter postado aqui o texto de Mia Couto achei que seria interessante trazer o de Patrício Langa. Foto(sorriso bonito) retirada do B’andhla:


"A opinião de Mia Couto, sobre qualquer assunto, não é qualquer opinião. É uma opinião consagrada. É consagrada por dimanação duma autoridade merecida como, pelo menos para mim, um dos maiores escritores Africanos. É, portanto, uma opinião respeitada mesmo antes de se lhe extrair a primeira crítica. Essa condição da opinião de Mia torna qualquer outro opinante, principalmente um ilustre desconhecido como eu, suspeito nas suas intenções ao interpelar Mia. Falo por experiência própria. A primeira vez que o interpelei foi em 2005 com um texto intitulado “ Os alienados do Mia”. Nesse texto divergia sobre algumas concepções de identidade de “raiz” apresentados pelo nosso romancista Mor. Os acólitos incondicionais de Mia caíram-me por cima. Disseram-me que Mia nunca podia estar enganado no seu raciocínio. Perguntaram-me quem eu era para questionar Mia. Afinal, Mia é Mia. Foi o próprio Mia, na sua humildade característica, e honestidade intelectual, que saiu publicamente em minha defesa distanciando-se dos acólitos incondicionais. Fê-lo numa edição do Savana que infelizmente nunca a pude ler, mas não me faltaram repórteres. Aí, também, reside a grandeza de Mia. De seu altar, mais do que merecido de consagrado escritor, se mostra de espírito aberto ao debate crítico de suas ideias, de sua opinião, aceitando a diferença de pensamento. Existe algum indicador de grandeza de um intelectual que esta atitude? É com o mesmo espírito pelo debate crítico e aberto que volto a interpelar Mia.

Num texto muito bem escrito, como não podia deixar de ser, vindo de quem vem, publicado na edição de 14 de Novembro de 2008 do semanário Savana, Mia faz uma reflexão em torno da seguinte questão: E se Obama fosse africano? Como se pode depreender pelo título trata-se de uma asserção condicional interrogativa. Obama não é africano. Ainda que exista a possibilidade de que o seja por adopção de nacionalidade em qualquer um dos países africanos cuja a lei o permita. A pergunta de Mia é portanto uma pergunta retórica. É uma pergunta para introduzir um raciocínio analógico. A analogia consiste na comparação das possibilidades que Obama teria de ser eleito presidente, como o foi nos Estados Unidos, caso fosse candidato em um dos países africanos. É neste aspecto da análise de Mia, a comparação dessa possibilidade, que pretendo discordar do nosso escritor.

Permitam-me resumir o argumento de Mia para que me possam acompanhar e talvez perceber o meu ponto de discórdia com a comparação que nos é proposta na análise. Espero que o faça com justiça. A ideia central do texto de Mia é de que se Obama fosse candidato as eleições num dos países africanos não teria as possibilidades que o permitiram tornar-se presidente eleito dos Estados Unidos no dia 4 de Novembro de 2008. As premissas que sustentam esta conclusão, ainda que hipotética e condicional, são retiradas de uma série de exemplos que pretendem demonstrar, com raras excepções, todo tipo de entraves que impenderiam o sucesso de um Obama africano. Pois bem, são precisamente essas condições que fazem da África, África e dos Estados Unidos, Estados Unidos. No entanto essas condições não se auto explicam. São precisamente as condições que precisam ser explicadas. Sei que ainda não fui suficientemente claro.

Mia está a comprar as condições de possibilidade de eleição de um candidato com o perfil de Obama nos Estados Unidos, um país, com África. Na verdade aqui também devia ser com os países africanos individualmente. Ian Khama, filho do primeiro presidente do Botswana, Seretse Khama, têm as mesmas características fenótipicas de Obama, e é presidente daquele país. Bom, dir-me-ão que Botswana é a suíça africana, a excepção.

A comparação de Mia assenta na ideia de que o que foi possível nos EUA não seria possível em muitos países africanos. Não seria possível em muitos países africanos por, fundamentalmente, seis razões: 1) os equivalentes de George Bush em África mudariam a constituição para se perpetuarem no poder, impedindo assim a possibilidade de qualquer Obama. Mia, perfila exemplos como o Gabão de Omar Bongo, A Líbia de Muammar Khadafi, o Zimbabué de Robert Mugabe, Angola de José Eduardo dos Santos, para citar alguns presidentes há mais de 20 anos no poder. 2) Os equivalentes do partido democrata de Obama, na oposição, em África não teriam espaço para fazer campanha e expor seu programa alternativo de governação. O Zimbabué surge como o exemplo paradigmático 3) Em África as elites no poder imporiam leis restritivas a candidatura de cidadãos considerados não originários, ao contrário dos EUA onde bastaria ter nascido em solo das terras do tio SAM. Desta vez o exemplo vem da Zâmbia onde o primeiro presidente Kenneth Kaunda se viu impedido de fazer política por lhe terem identificado origem Malawiana. 4) A cor da pele de Obama também seria motivo de impedimento da sua candidatura em África, mas uma vez por culpa das elites que usariam do mesmo argumento da autenticidade para o impedir de se candidatar. 5) A questão moral da homo-sexualidade, para qual Obama tomou uma posição liberal, seria também um entrave a sua candidatura africana. 6) E, finalmente, na eventualidade do Obama africano ganhar as eleições, caso fosse deixado concorrer com todos os inconvenientes até aqui apresentados, se mesmo assim concorresse e ganhasse depois teria que se sentar a mesa de negociações para discutir um GUN (Governo de Unidade Nacional) para partilha do poder com os derrotados. Não me vou referir aqui as excepções apresentadas por Mia. Os seis pontos fazem a regra do campo político em África na visão de Mia.

É precisamente aí onde a “porca torce o rabo”. Podemos comparar o campo político africano (eu preferia dizer de países africanos), que tornaria impossível um Obama, com aquele dos Estados Unidos, que possibilita Obamas? Mia fê-lo, então, é possível. Mas os termos de comparação são os mais adequados? Aí começam as surgir as minhas dúvidas. Antes porém, deixe-me dizer, claramente, que Mia está certo na descrição fenomenológica que faz do campo e do jogo político africano. Todos aqueles exemplos que inviabilizariam a candidatura, com sucesso, do Obama africano não são mera fantasia. O processo político africano é actualmente marcado por essas vicissitudes.

O que o argumento de Mia não nos permite entender é o por quê de as coisas serem assim. Na verdade Mia até nos dá uma dica, nomeadamente a de que estamos reféns da manipulação de políticos e elites políticas “corruptas, desmesuradamente ambiciosas, gananciosas”, eu acrescentaria, que tiram partido da desordem criada intencional e instrumentalmente. São estas elites que minam todo um contexto institucional que propiciaria a possibilidade de Obamas africanos, na óptica de Mia. Será? Esta é uma análise útil para percebermos, por exemplo, como são possíveis esses políticos ou essas elites politicas? O que torna possível os Mugabes? O que as torna possíveis em África e impossíveis nos EUA? São mesmo impossíveis nos EUA? Se Bush tivesse possibilidade de ser Mugabe e se perpetuar no poder nos EUA não o faria? O que faz Bush, na altura de ceder o poder, ser diferente de Mugabe? Alguns apressadamente dir-me-ão que a democracia americana funciona. Sim, aceito. Mas o que a faz funcionar? E o que faz a africana não funcionar. Oh, os políticos e as elites políticas africanas! É redundante.

São estas repostas que a analogia, apressada, de Mia não nos permitem ultrapassar. A Analogia vare para baixo do tapete as condições estruturadas, estruturais e estruturantes da acção dos políticos e das instituições democráticas que se desenvolveram historicamente nos EUA para permitir que hoje Obama seja possível. Alexis de Tocqueville, um pensador político e historiador Francês do século XIX, foi um dos que tentou dar conta dessas condições estruturais. Em dois volumes tentou perceber como é possível a democracia na América. Porque é que aquelas coisas que parecem dar errado noutros contextos, são possíveis na América? A eleição de Obama podia ser uma dessas excepções da democracia na América. Tocqueville, nas suas análises conclui que as democracias têm tendência de degenerarem em “despotismos moderados” ou na “tirania da maioria”. O que impedia isso de ocorrer nos EUA era a influência forte da religião. A religião protestante nos EUA influenciou a maneira como se faz política pela sua separação do poder governamental, o que todos os partidos políticos acordaram. Essa relação de separação do Estado com a religião concorreu para uma cultura política distinta da que por exemplo se vivia na França. Enfim, este é apenas um exemplo de uma explicação a partir das condições estruturais e estruturantes neste caso da relação entre política e religião. O mesmo raciocínio seria válido para pensar a impossibilidade de um Obama africano.

Essas condições histórico-sociológicas foram negligenciadas no argumento de Mia e fazem da sua analogia um exercício problemático. Mia está assim a comparar alhos com bugalhos. Quer dizer, para que a analogia de Mia fosse logicamente válida teria de haver equivalência entre os termos do que se está a comparar num aspecto relevante dessa comparação. As analogias têm uma forma de enunciação própria que segue o modelo: (A) está para (B) assim como (C) está para (D). Referem-se a semelhança entre duas coisas, mas não a sua igualdade. Os EUA não precisariam ser iguais a África, e nem teriam como. No entanto, as condições que estruturam o campo politico e condicionam a acção dos políticos é fundamental para a comparação que Mia pretendeu fazer. Uma analogia não é valida se o que estiver a ser comparado não for semelhante nalgum aspecto relevante.

No caso do texto de Mia que aspecto relevante torna a comparação válida? As elites politicas? Os políticos? África? As leis? A democracia? Podemos admitir que essas são entidades que existem em ambos os casos. Mas, o mais importante do ponto de vista analítico seria perceber como se produziram, como se estruturam e como condicionam a acção dos actores sociais envolvidos nesses espaços políticos. Existe alguma diferença fundamental entre o político africano e o americano? Se existe, em que consiste essa diferença? Quanto a mim, essa diferença, se existe reside no contexto institucional em que eles actuam, não na sua condição “genética” de político africano. Mia parece essencialisar o comportamento dos políticos e das “elites politicas africanas”. E ao fazê-lo deshistoricisa o comportamento dos políticos naturalizando-os. É como se o político africano fosse por natureza ditador, corrupto, ganancioso e por aí em diante e o Americano o inverso. E mais, há um aspecto interessante e até contraditório no argumento. Ao mesmo tempo que eles são assim, com raras excepções, também se tornam assim quando deixam de fazer parte do povo.

O povo, africano, para Mia é imaculado. Apenas aqueles poucos que ascendem cargos políticos é que sofrem uma mutação genética no poder. De novo a questão seria porque? Mas aí já estaríamos a entrar num círculo vicioso, pois a resposta seria são corruptos porque tem o poder e têm o poder porque são corruptos. Enfim Mia está na verdade a comparar 300 anos de constituição de instituições democráticas com duas décadas. A ideia de elites predadoras também precisa de alguma ponderação. Esse é um defeito de raciocínio que, infelizmente, está generalizado inclusive entre académicos de grande craveira. Quem lê o livro, bastante aplaudido no Ocidente, de Patrick Chabal e Jean Pascal Daloz, “Africa Works: Disorder as a political Instrument”, vai encontrar o lado académico desse mesmo argumento. No mesmo dia da vitória de Obama, diz Mia em seu texto, “África continuava sendo derrotada por guerras, má gestão, ambição desmensurada de políticos gananciosos (onde é que não os há?). “Depois de terem morto a democracia estão matando a política, resta a guerra em alguns casos”. “Outros, a desistência e o cinismo”. Estes exemplos de Mia fazem a base empírica do argumento de Chabal e Daloz. Perguntem aos americanos quantas guerras antecederam a sua democracia secular, quantas pilhagens houve até desenvolverem instituições credíveis (e mesmo assim caíram na maior crise corrupta do sistema bancário); quantos políticos desonestos se descobrem hoje na terra do tio SAM; quantos corruptos são denunciados e tantos outros escapam; perguntem aos americanos como se lida com os lobbyistas. Aí veremos que o problema não reside apenas na condição genética de político africano. Não estou a sugerir com isto que a África tenha que passar pela mesma trilha. Estou simplesmente a sugerir que África devia ser analisada por seus próprios termos. Não existe nenhuma possibilidade de se pensar num Obama africano, assim como é absurdo pensar-se, ainda que se faça, numa África que são os EUA."

4 comentários:

JOSÉ disse...

Excelente postagem, fabuloso artigo, mas este é o problema que tenho com muitos intelectuais: perdem-se em divagações académicas.
O Mia teve a coragem de dizer em termos simples e directos uma verdade incontestável: em África e muito particularmente em Moçambique, Obama dificilmente chegaria a Presidente e um dos motivos seria cor da sua pele.

Reflectindo disse...

Não acho que Mia Couto tenha encerrado o seu texto e muito menos sua ideia, mas que tenha aberto uma discussão. É isso que todo e qualquer que opina deve pensar e deve ser considerado. Se o texto fosse levado a uma turma de estudantes de cadeiras de ciências sociais e humanas para uma análise crítica, sairia muita coisa não mencionada por Mia.

Eu quero acreditar que o importante é analisarmos o que nos faz falhar em aproveitar os ganhos (vantagens) da democracia em África. Não precisamos de ir para longe para encontrarmos como se faz parar um cidadão prometedor ao seu povo. Na Beira, aí onde o Mia Couto nasceu, é o que assistimos.

Nota: Não sei se é que não compreendi, mas achei que Patrício Langa não diz aqui o problema específico das elites políticas africanas.

Nelson disse...

O texto esta academicamente denso demais que custa entender oque Patricio Langa discorda. Entendi que ele reconhece que os cenarios que Mia apresenta nao sao fantasias. Vejo-o "diminuindo" o raciocinio de Mia pelo facto de nao ser completo. Mais doque comparar Mia devia segundo Langa apresentar razoes por detras das coisas serem como sao.

Patricio Langa disse...

Caro Nelson,
Obrigado por divulgares o meu texto no teu espaço.
Fico-te também grato pelos rasgados elogios a minha pessoa.
És daquelas poucos sempre dispostos a dizer o que pensas sobre os diferentes assuntos públicos que nos interessam.
Reconheço que é difícil escrever, pelo menos para mim, para um público diversificado. Na académica, normalmente, escrevemos para nossos pares. No blog e no jornal não é assim. Ainda assim, não acho que o valor de qualquer texto resida na sua natureza, académica, jornalística ou bloguista. Existem apenas textos com ideias “bem” argumentados e aqueles com ideias problemáticas. Muitos textos até combinam os dois tipos, a diferença está no balanço que fazemos do argumento geral.
Aquele abraço amigo.