quinta-feira, 6 de março de 2008

Ao Sabor das Palavras


Mais uma vez Eduardo White deixou no fórum do mozamigos um saboroso guisado de palavras que lhe "roubei" para o meu mundo. Pode ser que ele me vista um colar de morte, linche ao se descobrir roubado.

Sobre as mãos brilhantes do sangue, tu cantas o país que lavro sobre a tua pele e por sobre a minha língua uma borboleta constrói com pedra o seu casulo. Dói-me a sua técnica, o peso da rocha sobre os dentes e nem mesmo os acórdãos da canção os lavam disso. Mas tu cantas, e é essa a função que unicamente te importa, libélula aprisionada em seus próprios vidros, asa batendo por dentro da sua própria transparência.
De mim a visão de ti me torna suspeito em tudo e vigiado e acorrentado. Dentro é o peito um anel que se estrangula, a gordura leve da respiração. A terra é mole e húmida e do seu cheiro próprio me chegam as minúsculas vozes dos insectos, a das formigas se cumprimentando aos beijos pelo amor em suas antenas e as flores que comungam nas mãos os tubérculos, as raízes por onde se escondem as cores das ervas.
Sobre as mãos brilhantes do sangue tu vives e trabalhas nos escritórios e nas fábricas e nos calos escamosos das mamanas sachando repolhos, cenouras, milho e feijão e o leite forte e maduro em seus peitos dormindo ou sorrindo dentro do sono das crianças em suas costas, trabalhas a sangue a beleza das palmeiras subindo ou de uma bicicleta que leva em seu guarda lamas a saudade escrita a algum nome falecido, tu de onde sorriem os caranguejos e outros moluscos colhidos para a fome pelas praias, as velas enfunadas da madeira talhada sulcando o mar com pescadores dentro nos seus chapéus de palha. Tu, pequena maçala perfumando-me, pau de cana doce esculpindo língua e papilas, o amarelo do açúcar nos pirolitos, a letra infantil vivendo nos cadernos escolares.
Um país que só eu sinto ao despir-te para a nudez, para o esplendor dos cabelos duros por de entre os dentes do pente, para as rugas que sobem para tocar as estrelas de noite, ou aquecer o chá, de dia, numa boca do sol e assim lá vivo, imitando-me com a subtileza delirante de alguns poetas, a beleza que lhes vive com os dedos, a loucura à espreita na cabeça e nem assim me importo se me achem grande ou pequeno, se bom ou mau, se original ou representativo, ninguém poderá ler-te melhor que eu, sangrando o azul das mãos pelo meu rosto que é agora um avião riscando-te com passageiros dentro.
Habituei-me à minha pobreza e por isso da tua não tenho medo, nem da de ninguém, apenas uma dor que me aperta, uma navalha afiada a trinchar-me as veias quando vejo que essa nossa pobreza é pela miséria que se traduz no que falta nos hospitais, nos músculos raivosos dos assassinos em nossas ruas e que há reis e príncipes e princesas a comer gaviões importados em nossas mesas e limusines com champanhe dentro. Nas igrejas cheias, alguém burla Deus, e isso é-me esquisito, e milagrosamente faz desaparecer o dinheiro das carteiras dos fiéis, tal como nos escritórios públicos e das poucas empresas que ainda nos pertencem. Falam-nos da liberdade de expressão como um direito e não nos dão, entretanto, o direito de sermos expressão em nós próprios e todos nós sabemos que isso é uma grande teta, um odre a tornar-se numa imensa fonte.
Porém, não é esta feiura o que vejo em ti, mas a beleza vestida de esperança, a alguma ignorância que te fica tão bem muito embora de vezes a vezes ela se transforme numa lança mortal contra mim. Também posso ver um belo chalé em teu ventre e muitas crianças correndo à volta dele, aquelas crianças que ainda nos parecem impossíveis de materializar, aos gritos e sorrindo por debaixo dos bonés, e os arbustos verdes que o cercam, os arbustos verdes e coloridos, tudo isso é o que vejo ou o que quero ver e o que irreversivelmente eu gostaria visses comigo.
Sorrio, entre lágrimas e alguma angústia, sorrio, extenso como as savanas por este território afora, como o ar quente que bafeja sobre elas, e digo-te, pode-se amar um país com a mesma força do amor com que se ama uma mulher, e não é preciso que seja bela mas que se a sinta e se a respeite em toda essa dimensão.
Então é deste modo que te afirmo: Agora beijo-te e esse beijo é a bandeira com que visto a minha cidadania. O de moçambicano simples. O de moçambicano sonhando-se com a outra liberdade que tarda, a do direito da liberdade de beijar-te num país qualquer, com dinheiro no bolso, a pensarmos felizes na nossa viagem de regresso. Mas isso é apenas um sonho e não há ninguém melhor que nós, irrefutavelmente, a sonharmo -nos com o pouco que se ganha, de férias a visitar e a amarmo-nos pelo Mundo sem sairmos daqui.

2 comentários:

AGRY disse...

Não conheço muito bem Eduardo White! É, incontornavelmente, um nome grande das letras moçambicanas. A sua escrita é refrescante,criativa e estimulante. Sentimo-nos bem, ao lê-lo
Abraço
Agry

Nelson disse...

Eu me sinto privilegiado por poder lhe chamar amigo. Tem sido muito bom lhe ouvir e ler.