sábado, 2 de maio de 2009

DE VOLTA AO Dr. ELISIO MACAMO

No seu IDEIAS CRITICAS o Dr. Elísio Macamo explica oque ele quis dizer com oque disse na entrevista da Bantulandia. Decidi trazer para ca o trexto todo.

"Da dignidade humana

Costumo dizer que pensar doi. A inspiração para essa afirmação algo arrogante vem, na verdade, da leitura de Platão e mais especificamente da sua imagem da caverna. Nessa imagem, como é sabido, ele descreve alguém que só vê sombras (projectadas pelo sol que ele não vê) e toma essas sombras pela realidade. Se ele se virasse e olhasse directamente para o sol constataria, porém, que o que ele via na parede da caverna não era a verdadeira realidade. Mas essa constatação iria doer porque seria necessário enfrentar o sol. Platão utilisa essa imagem para distinguir os filósofos dos demais com o argumento de que só o filósofo é que tem a coragem de enfrentar o sol na procura da verdade. Ele prossegue com a conclusão segundo a qual os filósofos seriam, em virtude disso, os únicos habilitados para dirigirem outros. Não o acompanho nessa conclusão. Só estamos juntos na ideia de que a procura do conhecimento é dolorosa.

Há algumas semanas aceitei o convite de Josué Bila para responder algumas perguntas que ele me enviou por escrito (ver aqui). A última pergunta que ele me colocou foi de saber em que áreas dos direitos humanos eu acho que o Governo moçambicano deveria investir mais. A minha resposta foi a seguinte:

Eu acho a discussão sobre direitos humanos menos interessante do que uma discussão mais fundamental sobre os pressupostos da nossa ordem política. Pessoalmente, estou mais interessado na questão de saber até que ponto a nossa classe política, mas também a nossa massa intelectual tomam a sério o desafio que nos foi imposto pela nossa própria história de garantirmos a dignidade humana no nosso país. Até que ponto é que o nosso sistema político garante isso? O que faz para alargar os espaços de afirmação desta dignidade? Que critérios identificamos nós como fazendo parte desta dignidade? A discussão sobre direitos humanos parece-me abstracta demais para ser de alguma utilidade no nosso contexto. Torna-se numa posição ética que dificulta o debate político. O país precisa de política, o que pressupõe debate de ideias, e não de certezas que fecham a discussão.

Desde essa altura tenho lido comentários fazendo alusão directa ou indirecta a estas observações. O mais directo foi do Nelson Livingston no seu blogue (ver aqui e aqui) a quem disse que me faltava tempo para lhe dar uma resposta satisfatória sobre a distinção que ele supoz que eu estivesse a fazer entre direitos humanos dum lado e dignidade humana do outro. Continuo sem tempo, mas alusões indirectas feitas pelo Custódio Duma (aqui e aqui) bem como uma entrevista recente que ele concedeu ao Josué Bila (ver aqui) fazem-me sair da letargia do blogue para explicar o que, na verdade, uma leitura cuidada e isenta constataria ser suficientemente claro. Devo dizer que não tenho a certeza se o Custódio Duma se refere a mim nos seus escritos. Essa incerteza vem, por um lado, do facto de que as alusões não são directas apesar de me parecer óbvio que ele se refere ao conteúdo do que escrevi e, por outro, do facto de que o enquadramento da interpretação (deturpada) que ele faz (do que escrevi) é tão maldoso e de tanta má fé que entra em choque com a ideia com a qual fiquei da sua pessoa e do trabalho que ele e colegas da Liga dos Direitos Humanos fazem. Espero estar enganado, mas como acredito no debate directo de ideias (e só de ideias) escrevo isto na esperança de que ele (ou outros) me corrijam nestas suposições.

Direitos humanos versus dignidade humana?

A ideia que ficou nalgumas pessoas que leram essa entrevista foi de que eu vejo contradição entre direitos humanos e dignidade humana e, por extensão (pelo menos nos textos de Custódio Duma) sou conivente com tudo quanto anda mal no país e viola o nosso sentido de direitos humanos. O problema da má qualidade da nossa esfera pública é que nos obriga quase sempre a perdermos tempo com questões supérfluas. Assim, se quisesse alinhar nisso perderia agora o meu tempo a tentar mostrar que não defendo coisas más, que não quiz dizer isso, que sou contra isto mais aquilo, etc. Acho isso frustrante, mas a nossa esfera pública vive disso. Prefiro insistir na questão central e convidar os interessados a discutir apenas essa questão. E a minha questão na suposta distinção que fiz foi de que a discussão sobre os direitos humanos no nosso país é demasiado abstracta para ser de alguma utilidade política. O que queria dizer com isso é que precisamos de pegar num aspecto do conceito de direitos humanos que é directamente relevante para a nossa história e, a partir dele, pensarmos o nosso sistema político. Há quase quatro anos que tenho vindo a escrever que a questão da dignidade humana é central ao nosso devir histórico pelo que ela constitui, em minha opinião, o nosso ponto de entrada para o mundo normativo que os direitos humanos são. Daí, portanto, este conjunto de interrogações contidas na entrevista em questão e que constam na minha resposta: “Pessoalmente, estou mais interessado na questão de saber até que ponto a nossa classe política, mas também a nossa massa intelectual tomam a sério o desafio que nos foi imposto pela nossa própria história de garantirmos a dignidade humana no nosso país. Até que ponto é que o nosso sistema político garante isso? O que faz para alargar os espaços de afirmação desta dignidade? Que critérios identificamos nós como fazendo parte desta dignidade?”.

A ideia de dignidade humana é, no contexto dos direitos humanos, relativamente nova. Ela não consta, para pegar em dois documentos fundamentais, nem na declaração francesa de direitos do homem e do cidadão de 1791 (que apenas diz: “todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. O bem comum é o único fundamento das distinções sociais”), nem na declaração americana de 1776 (que reza: “todos os homens nascem natural e igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inalienáveis dos quais não podem ser despojados ou privados quando entram em estado de sociedade”). Só em 1948 com a declaração universal dos direitos do homem é que a dignidade humana entra na seguinte fórmula: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Porquê isto?

É porque em atenção à própria história europeia que foi fundamental para a formulação dos direitos humanos o aspecto mais importante que essas declarações eram chamadas a defender e a preservar era a liberdade individual. No caso francês tinha-se em atenção algo como o que Jean-Jacques Rousseau defendia e que definia a condição de liberdade como consistindo na obediência duma lei que nós próprios escolhemos através da vontade geral. Nenhum de nós iria adoptar uma lei que o privasse de direitos fundamentais. No caso americano fortemente influenciado pela filosofia do liberalismo a liberdade individual foi particularmente vista como a defesa da propriedade individual razão pela qual eles até nem viam nenhuma contradição entre a sua declaração de liberdade natural do homem e o sistema escravocrata que, entretanto, floria e roubava a milhares de homens a sua dignidade. Sendo eles propriedade dos senhores das plantações faziam simplesmente parte do inventário. Com isto não quero dizer (para não ser de novo mal interpretado) que não tivesse havido nenhuma referência à ou discussão sobre a dignidade humana na história da humanidade. É verdade que o discurso jurídico europeu na sua versão romana, e mesmo grega, não tinha vocabulário para esta noção. Na civilização romana o termo “dignidade” (dignitas) tinha o significado que o termo “dignatário” entre nós tem, isto é o mérito ligado a uma função. Mas na teologia cristã (e provavelmente muçulmana) a noção de dignidade foi sempre discutida, ainda que em referência à presença do Criador em cada um de nós (isto, por sua vez, pode explicar porque alguns teólogos não viam nenhuma contradição entre a noção cristã de dignidade e a escravização ou extermínio de povos não-europeus [não cristãos!]). Os filósofos do iluminismo, estilo Kant ou Rousseau, também falavam da dignidade humana. Contudo, estas ideias não entraram nos textos fundadores dos direitos humanos.

A pergunta agora é porque só em 1948? Segundo um filósofo francês, Jean-François Mattéi, a razão principal para a inclusão explícita da noção de dignidade humana na concepção dos direitos humanos foi o sentimento de indignação perante o que homens foram capazes de fazer a outros homens no holocausto e na segunda guerra mundial. Esta experiência vincou a importância do homem como homem ou, para dizer o mesmo nas palavras de Paul Ricouer, outro filósofo francês, “qualquer coisa [que] é devida ao ser humano pelo simples facto de ser humano” (quelque chose est dû à l’être humain du seul fait qu’il est humain). É esta ideia de dignidade humana que se torna premente e vai exigir a sua própria inclusão na nossa concepção dos direitos humanos. Muitos actos legislativos posteriores a 1948 na Europa incluem a dignidade humana como princípio fundamental sendo a constituição alemã o exemplo paradigmático, uma vez que no seu primeiríssimo artigo reza que a dignidade humana é inalienável.

A importância da história real

O que quero destacar com este palavreado todo é que estas coisas são feitas em atenção à história real. Não são como no nosso país ou em África dum modo geral onde existe esta expectativa problemática de que devemos fazer as coisas como os outros as fizeram sem atenção à nossa história. E para evitar (de novo) mal entendidos apresso-me a dizer que não estou a querer defender uma posição relativista. Não há no meu argumento nenhuma ideia de que existem direitos humanos de africanos e direitos humanos de europeus. O que estou a dizer é que o universal faz sentido e ganha sua inteligibilidade dentro de um contexto local com a sua própria história. Em Moçambique, e em minha opinião, a questão dos direitos humanos colocou-se sob a forma do sentimento de indignação perante a experiência colonial que nos roubou a nossa dignidade como humanos, isto é que nos tirou aquilo que nos era devido pelo simples facto de sermos humanos. A luta anti-colonial, portanto, tinha como objectivo recuperar a dignidade que nos foi tirada pelo que o seu desfecho positivo (na nossa perspectiva) devia ter colocado sobre os que fizeram a luta a responsabilidade de instalar um sistema político que garantisse essa dignidade. Reparem que esta é a minha interpretação da nossa história. O filósofo Severino Ngoenha tem outra, interessante, que enfatiza a liberdade (o paradigma libertário). O desafio que tanto ele quanto eu estamos a colocar aos intelectuais moçambicanos não é de adoptarem as nossas posições, mas sim de pensar o país a partir daí e ver até onde isso nos leva. Eu não estou a propor nenhuma nova ideologia, estou simplesmente preocupado com os fundamentos da nossa ordem política e gostaria que houvesse mais reflexão sobre isso sem descurar a prerrogativa que os activistas têm de lutarem pelos “direitos humanos”. Estamos em registos diferentes.

Na entrevista do Josué Bila acrescentei ainda o seguinte: “A discussão sobre direitos humanos parece-me abstracta demais para ser de alguma utilidade no nosso contexto. Torna-se numa posição ética que dificulta o debate político. O país precisa de política, o que pressupõe debate de ideias, e não de certezas que fecham a discussão”. Só uma leitura descuidada, ou de má fé, é que pode concluir a partir disto que eu oponho os direitos humanos à dignidade humana e, por via disso, defendo as irregularidades que caracterizam aspectos do nosso estado de direito. Ora, tudo quanto quiz dizer com isto é que “direitos humanos” não é coisa que faça muito sentido na discussão política. É, aliás, uma posição ética e que, por isso, não convida exactamente ao debate. Ou se é pelos direitos humanos, ou não. E no nosso país o lado ético desta noção está patente na forma como alguns usam a noção para pôr em causa a legitimidade do governo. A acusação mais frequente, tanto de fora quanto de dentro, é justamente esta. O governo viola os direitos humanos e prontos. Que isso não constitui nenhum convite ao debate e à melhoria do sistema político passa despercebido a muita gente. E por causa da perversidade da nossa condição de receptores de ajuda esta posição ética facilmente se torna numa profissão (“defensor dos direitos humanos”), sem nenhuma implicação para o que de fundamental em termos de ideias e concepção do político há em tudo isso. Muitos se comprometem com a noção de direitos humanos sem grande interesse (pelo menos manifestamente) em saber o que isso realmente significa e, acima de tudo, o que significa defender direitos humanos no nosso país.

Li uma entrevista que o Custódio Duma concedeu ao Josué Bila sobre este assunto (conferir aqui). A dado passo da mesma o Josué Bila pergunta se o seu entrevistado conhece algum caso em que um cidadão processou o Estado moçambicano exigindo-lhe o direito à alimentação, saúde, educação e outros direitos. A resposta é não e isso porque os cidadãos não sabem que é possível, isto é, é por ignorância e também porque a justiça moçambicana é muito cara. Há na pergunta e na resposta uma concepção tão instrumental dos “direitos humanos” que é difícil saber se os envolvidos nesta conversa têm noção do contexto dentro do qual os direitos humanos de que falam se tornam visíveis e necessários e, acima de tudo, se eles distinguem entre um princípio (normativo) e sua realização (política). Para além de me parecer totalmente inútil uma concepção de direitos humanos que toma os direitos da segunda geração (alcançados na Europa por via de lutas sindicais) como algo que alguém pode cobrar directamente ao Estado em tribunal, noto neste pequeno trecho da conversa uma concepção problemática da relação entre “direitos humanos” e Moçambique. O que os “direitos humanos” significam enquanto princípio normativo da nossa sociedade é que tudo o resto que fazemos deve satisfazer a norma que eles representam. Tudo o resto que fazemos é política e é, portanto, lá onde o debate deve se situar.

A minha proposta foi de encontrar esse fundamento do político na ideia de dignidade humana que me parece corresponder melhor ao nosso instinto natural. Nenhum veterano da Frelimo que viveu as humilhações do colonialismo, nenhum veterano da Renamo motivado pela ausência de liberdade de opinião no período imediatamente a seguir à independência, enfim, nenhum de nós pode ficar indiferente à violação da nossa dignidade como humanos e, portanto, todos nós temos interesse em que o que fazemos no nosso quotidiano preserve essa nossa humanidade fruto da nossa afirmação como sociedade. Isto não significa que o Estado nos deve dar de comer, curar as nossas doenças e mandar-nos à escola. Significa, no mínimo, que o Estado não deve colocar obstáculos a que consigamos essas coisas. Como isso deve ser garantido é do pelouro do político.

Defesa de direitos humanos e totalitarismo

A concepção de direitos humanos que fica evidente nesse pequeno trecho é platónica no pior sentido da imagem da caverna, razão pela qual não alinho com Platão até ao fim. Ele não só acreditava que os filósofos eram as pessoas destinadas a nos governarem por conhecerem a verdade das coisas como também, e por implicação, supunha que os demais, isto é aqueles que continuavam na caverna só podiam se realizar pela mão do filósofo. Os demais são demasiado inocentes e ignorantes para saberem como chegar à boa vida por si próprios. Daí que haja, entre nós, uma concepção militante dos direitos humanos que não procura traduzi-los em princípios normativos susceptíveis de normalizar a acção política, mas sim usa-os como uma arma de arremesso contra o governo e contra quem se interessa por saber o que eles significam para nós. Sem se aperceberem os militantes dos direitos humanos assumem o tipo de postura que no passado impediu que fóssemos respeitados na nossa dignidade humana. O poder colonial sabia o que era a boa vida e arrogou-se o direito de nos conduzir até lá; a Frelimo revoluccionária também sabia o que era a boa vida e arrogou-se o direito de nos conduzir até lá; hoje os activistas de direitos humanos sabem o que é a boa vida e querem se arrogar o direito de nos conduzir até lá. O importante é que para que isso aconteça fiquemos calados, sigamos e confiemos nas suas boas intenções.

Com estas últimas palavras azedas não quero pôr em causa o excelente trabalho feito pela Liga dos Direitos Humanos na promoção de uma sociedade melhor. E o objectivo devia ser esse mesmo: promover uma vida melhor para os moçambicanos e não necessariamente defender os direitos humanos. Activismo, tal como a actividade académica, misturado com política dá mal. Impede as pessoas de prestar atenção ao que os outros dizem e torna-os intolerantes, ambas as coisas grandes atentados à nossa dignidade. Isso é o que queria dizer. Queria alertar para os perigos do totalitarismo que nem sempre vem dos maus. Os bons também podem ser perigosos."

1 comentário:

Renan Gallinari disse...

Parabéns pelo texto! Muito interessante. Nos faz pensar que já passou da hora de agirmos! Um abraço, do Brasil.